quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O que é coisa com coisa?


I. Quer fazer a coisa certa? Então trate de entender como a coisa funciona. Vivemos deixando de fazer certas coisas (1)para fazer as coisas certas.
(2)Se tem uma coisa que anda incomodando a língua portuguesa, é a coisa. O único consolo é que "coisa" é uma dessas raríssimas palavras que existem em qualquer idioma, e em todos eles têm o mesmo significado, (3)isto é, coisa.
No princípio, Deus criou as coisas, ensina o Gênesis, para só depois criar o Homem. Quer dizer, geneticamente falando, que tudo que não era gente era coisa. Isso durou até 1963, (4)quando finalmente o poeta Vinícius de Moraes decidiu elevar (5)também o ser humano à categoria de coisa: "Olha que coisa (6)mais linda, mais cheia de graça..." A bem da verdade, nenhum grande escritor resistiu à coisa, e o próprio Shakespeare notou que existem muito mais delas (7)entre o céu e a Terra do que sonha a nossa vã filosofia.
(8) Mas o que antigamente era um artifício poético e literário acabou virando arroz-de-festa. Tem até lugar onde a coisa passou a ser flexionada ("O coiso, como é mesmo o nome dele?") ou conjugada ("Eu estava coisando quando a máquina pifou"). (9)Ou por preguiça ou por economia de neurônio, as pessoas passaram a abusar da coisa: por que aprender a falar empregabilidade se é bem mais fácil dizer "aquela coisa que eu não tinha e (10)por isso perdi o emprego"? Nas empresas, a coisa já se tornou um sinônimo bastardo de qualquer coisa:
-Quer saber de uma coisa? Pra mim chega.
- Chega do quê?
- Cansei. E uma coisa eu digo: não sou só eu.
- Peraí, me explica melhor.
- Explicar o quê? Vai me dizer que você é a favor desse estado de coisas?
- Sei lá. Você nem me disse ainda o que está acontecendo.
- Acorda, cara! A coisa tá preta nessa empresa.
- Taí, eu não acho.
- Como, não acha? Isso aqui é coisa de doido.
- E digo mais. Prá mim, tá tudo ótimo.
- Opa, até você? Eu bem que desconfiava. Aí tem coisa...
II. Convenhamos: a coisa já passou do ponto, e esse é o âmago da questão. Ao mesmo tempo em que estão adquirindo fluência em inglês e em outros idiomas alienígenas, muitos profissionais insistem em espezinhar o português escorreito. A proliferação indiscriminada da coisa é um bom exemplo disso. Nas empresas, a hiperespontaneidade na comunicação está roubando aos diálogos a consistência e a praticidade. Mas a boa linguagem corporativa jamais admitirá tais atalhos verbais.
III. Quem realmente busca a excelência em todas as suas dimensões tem por obrigação permear-se com um vocabulário eclético e dinâmico. O tempo ensinará aos despreparados que o sucesso só confere prêmios aos que sabem administrá-lo multifacetadamente, e isso inclui o repúdio ao uso do palavreado fácil e o respeito ao vernáculo. Apenas após dominar as nuances de sua língua pátria é que alguém poderá alardear que atingiu a plenitude profissional. Porque só aí terá compreendido e absorvido os três pilares básicos em que se apóia a essência da filosofia corporativa, a saber:
1. Entender como a coisa funciona.
2. Fazer a coisa certa.
3. Falar coisa com coisa.

Fonte:Revista Você, abril/2000

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