quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Um vestido nasce de duas camisas


O prêmio Ponto Zero, entregue a Cynthia Hayashi, valoriza o estilista empreendedor: referência à dor por meio de dobras e torções no tecido e da estamparia digital
Eles já quiseram ser só conceito. Depois, perceberam que precisavam ser comerciais. Hoje, acreditam que a roupa é um produto de consumo, mas também uma forma de refletir sobre os excessos e desperdícios do nosso tempo. Assim são alguns dos novos estilistas que começam despontar neste final de década do século XXI. Diferente de seus pares - que despertaram a atenção do grande público para a moda brasileira a partir do início dos anos 90 - eles sabem que não podem descuidar da gestão, estão de olho na concorrência exercida pelos grandes varejistas e não têm ilusões sobre o competitivo mercado da moda. Por isso, dão passos cuidadosos.

Outro ponto divergente: se nos anos 90 o cenário era mais masculino - povoado por nomes como Alexandre Herchcovitch, Jum Nakao, Lorenzo Merlino, Eduardo Ferreira, Marcelo Sommer, Jeziel Moraes, Ronaldo Fraga e Mario Queiroz - agora o time feminino está reforçado por Fernanda Yamamoto, Agustina Comas (da In.Use), Sandra Lima e Cynthia Hayashi. Todas novas e ainda conhecidas apenas nas rodas "fashionistas". Mas com algo a dizer e - sobretudo - a mostrar.

Cynthia Hayashi, formada este ano em Desenho de Moda pela faculdade Santa Marcelina, de São Paulo, trabalhou desde o primeiro ano de curso em confecções do Brás e do Bom Retiro. De lá, foi para a grife Mob, onde permaneceu até dezembro. Sua coleção de formatura - intitulada "Dor Forma Beleza" e apresentada em novembro no evento Casa de Criadores, em São Paulo - ganhou o primeiro prêmio do Ponto Zero, projeto idealizado pela Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT), pelo Sindicato da Indústria Têxtil do Estado de São Paulo (Sinditêxtil-SP), Casa de Criadores e Mercado Mundo Mix (MMM).

O Ponto Zero tem por objetivo descobrir novos profissionais de moda na categoria Estilista Empreendedor. Com a conquista, Cynthia poderá participar da Casa de Criadores por pelo menos mais duas edições, vai expor suas roupas e apresentar um desfile no MMM em Portugal, em maio.

O trabalho de Cynthia vai na contramão do "fast fashion" e faz referência à dor por meio de dobras e torções no tecido e da estamparia digital. "Agora, é partir para um trabalho mais comercial para começar a juntar um bom capital", diz Cynthia, que sabe que a conquista de uma loja própria leva tempo. "Vou aos poucos, conquistando primeiro as multimarcas."

Fernanda Yamamoto é oriunda do Rio Moda Hype, desfile coletivo do time "café com leite" do Fashion Rio, que durou até a última edição do evento sob a coordenação de Eloysa Simão e a Dupla Assessoria, em junho deste ano. Com o fim da categoria, Fernanda foi convidada a permanecer no time principal do Fashion Rio por Paulo Borges, que assumiu o evento, mas decidiu adiar o desfile até junho de 2010. Há cerca de um mês, abriu uma butique multimarca, que leva seu nome, na Vila Madalena, em São Paulo. E porque multimarcas? Porque sabe que sozinha ainda não faz verão. Nem inverno, primavera ou outono.

Fernanda convidou nove estilistas que conheceu no Rio Moda Hype e ainda não tinham pontos de venda em São Paulo. Cada um, tem uma espécie de corner na loja, que a cada nova temporada promete agregar novos nomes. É o caso de Tarcisio Almeida (Bahia), In.Use (São Paulo/Montevidéu), Antonio Bizarro (Paraná), Julia Valle (Minas) e Sandra Lima (DF), entre outros, além da própria Fernanda e da designer de joias Rosely Kasumi.

Fernanda é formada em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), trabalhou por três anos na Fundação Gol de Letra e por um na empresa da família (de venda de roupa por catálogo) até decidir se dedicar à moda. Estudou por dois anos na Parsons School, de Nova York. Fernanda passou pelo curso de "Direção em Criação de Moda", da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e pela grife de Alexandre Herchcovitch, antes de se aventurar com uma linha própria - marcada por um trabalho de delicadas dobraduras.

"Quero reunir várias grifes num mesmo espaço. Se possível, algumas da América Latina. É uma questão de sobrevivência conseguir atingir o maior número de pessoas diferentes", diz Fernanda. "Não quero ser mais uma lojinha da Vila Madalena." De acordo com a estilista, o perfil da Vila Madalena está mudando: deixando de ser somente voltado a uma moda artesanal, para ter grifes com peso comercial. Recentemente, a carioca Farm abriu uma butique na região, que também abriga uma loja do estilista mineiro Ronaldo Fraga - a única em São Paulo. "Nossa intenção é mostrar ao consumidor um produto com inteligência e equilíbrio entre o autoral e o comercial."

No grupo da butique Fernanda Yamamoto, as roupas da In.Use se destacam pelo efeito "patchwork" moderno: são feitas a partir de outras peças de estoque remanescentes de diferentes confecções. A grife foi criada há cerca de um ano por duas estilistas uruguaias: Agustina Comas, que vive no Brasil desde 2004, e Ana Inés Piriz, que mora em Montevidéu. Agustina - uma das editoras do "BlogCouture", que reúne textos de brasileiros e uruguaios sobre moda - faz parte da equipe de estilo da Daslu Homem. Ana trabalha para a butique Margara Shaw, de Montevidéu. Nas horas vagas, tocam a In.Use.

O processo de trabalho diz muito sobre esta nova geração: as peças são desenhadas a quatro mãos via Skype, reuniões ocorrem por videoconferência, documentos e fotos ficam disponíveis em arquivos virtuais. Também no discurso a marca mostra estar "up to date". "Tudo começou a partir de um questionamento sobre a quantidade de desperdício que a moda gera a cada temporada", diz Agustina. "Depois do lançamento, da liquidação e do bazar, esta roupa que é nova, fica velha e ninguém mais quer." Além disso, diz a moça, as pessoas andam consumistas demais. "Boa parte delas já possui roupas que vão durar a vida toda e não precisaria comprar coisas novas."

Vale ressaltar que uma das primeiras experiências de Agustina com a moda, no Brasil, foi ao lado do estilista Jum Nakao, durante o processo criativo de seu desfile-manifesto feito com roupas de papel vegetal, para a temporada de primavera-verão 2004/2005 do São Paulo Fashion Week. Nakao, sem dúvida, foi uma influência na idealização da In.Use, que já nasceu sob a lógica da reciclagem, da não geração de coisas novas, mas do reaproveitamento do que já existe. "De uma calça nós fazemos uma jaqueta ou uma saia. Com duas camisas, fazemos um vestido e por aí vai."

Na etiqueta de cada peça da grife, vai o desenho com os símbolos das roupas que a originaram. "O interessante é que nunca um artigo fica igual ao outro", diz Agustina, que cria junto com Ana Inés os protótipos que são enviados a oficinas de costura, em São Paulo. "No início, foi difícil fazer as costureiras entenderem que teriam que desmanchar as roupas para criar outras."

Outra dificuldade, conta Agustina, é quanto ao custo: reformar uma peça que já existe é mais caro do que fazer algo partindo do zero. Por isso, a dupla começou a adquirir também sobras de tecidos de outras empresas, para dar vida à suas coleções. Entre os novos projetos da dupla está uma minicoleção para a tradicional grife uruguaia de artigos de lã Manos Del Uruguay. "São peças para o inverno 2010 que estão sendo feitas com o estoque antigo de artigos de tricô da marca." A coleção será vendida na Manos Del Uruguay e na butique de Fernanda Yamamoto.

O estilista Jum Nakao e a butique Fernanda Yamamoto são os pontos em comum entre a In.Use e a designer Sandra Lima, de Brasília. As roupas de Sandra são feitas com elástico em rolo, muito usado na estrutura de sofás. O elástico é cortado em pedaços, depois reunido até dar forma a uma veste - normalmente um colete ou corset. "Vou unindo faixa por faixa até formar um tecido, que será modelado no corpo como no processo de moulage", diz Sandra. "Meu trabalho foi todo orientado por Jum Nakao, desde o meu primeiro desfile para o evento Capital Fashion Week, de Brasília."

Segundo Sandra, suas vestes têm forma de armaduras, para lembrar que "estamos todos engessados na aparência". As peças são únicas e numeradas. A tiragem é pequena: apenas 20 modelos por coleção. "Trata-se de um processo artesanal, que perde o sentido se feito em escala." Mas para contrabalançar - e atingir a viabilidade comercial necessário à sobrevivência -- Sandra prepara uma coleção de blusas de malha que não têm costura e que podem ser modificadas no corpo, conforme o jeito se serem abotoadas. Desta forma, pode-se ter várias peças numa só. "E tentar deixar a terra menos saturada de tanta coisa."


Fonte:José Erivaldo Cavalcanti

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