domingo, 13 de junho de 2010

Os últimos Alfaiates


O alfaiate Florentino Alves e o corretor Rodolfo Nickel: gosto pelo sob medida promove o encontro de gerações
capa

Os últimos Alfaiates
Considerada profissão do passado, a alfaiataria mostra, ao mesmo tempo, a resistência da técnica em pequenos estabelecimentos e a fragilidade de um ofício que não forma sucessores


“Quando você me ligou, fiquei preocupado, porque a minha oficina é feia pra chuchu”, diz em tom de desculpa Florentino Alves da Silva, 69 anos, por detrás do velho balcão de fórmica de sua alfaiataria, cravada num quarteirão movimentado da Avenida Sete de Setembro, em Curitiba. Ele acabara de se despedir de um cliente que tinha ido buscar um terno. O freguês, de 28 anos, diz ter entrado na Alfaiataria Florentino por acaso, quando foi levar seu celular para consertar na loja ao lado. O jovem corretor de imóveis gastou uma razoável quantia para ter um traje exclusivo. “Não que seja prático, mas tem todo um ritual. Escolher o tecido, tirar a medida, provar...”, diz Rodolfo Nickel de Haro, que volta e meia manda fazer um terno sob medida. Embora a alfaiataria tradicional tenha sofrido o impacto do desenvolvimento da roupa pronta, da adesão em massa à indumentária casual e das mudanças nas relações de trabalho, ela sobrevive em algumas dezenas de pequenas oficinas espalhadas na cidade, principalmente no Centro.

Calcadas na divulgação boca a boca, elas, que estampavam grandes espaços publicitários nos jornais da primeira metade do século passado, são uma presença discreta, mas representam um contingente bem maior do que se imagina.



Ivonaldo Alexandre/ Gazeta do Povo


Aniele Nascimento/Gazeta do Povo


Aniele Nascimento/Gazeta do Povo


Aniele Nascimento/Gazeta do Povo


Aniele Nascimento/Gazeta do Povo


O casal Iraci e Rene Bonassina é freguês há 20 anos da Alfaiataria Florentino

Filho de imigrantes italianos, Ferdinando Nardelli fez a vida a bordo de sua Singer nos tempos áureos da alfaiataria




Quem se lembra?
Selecionamos alguns termos do glossário do livro Alfaiatarias em Curitiba:

Casimira

Tecido de lã utilizado para confecção de ternos.

Chulear

Dar pontos na borda de um tecido cortado para evitar que se desfie. Antes era feito manualmente, hoje é realizado à máquina.

Dedal

Diferente do dedal das costureiras, o do alfaiate é aberto na parte superior e empurra a agulha com suas laterais. Seu manuseio, portanto, é peculiar.

“Depenar a galinha”

Alguns alfaiates chamam assim o ato de retirar os pontos dados durante o processo de alinhavar o paletó.

Fazenda

Sinônimo de pano ou tecido.

Mestre alfaiate

Em geral, dono do estabelecimento, domina todo o processo de realização dos produtos da alfaiataria. É o responsável pelo corte do tecido e pelo atendimento ao cliente.

Oficial

Na alfaiataria é o trabalhador qualificado para a confecção de uma das três peças do terno, de onde advém o nome de sua especialização: paletozeiro, coleteiro e calceiro.

Oxford

Tecido, em geral, feito de poliéster. De fácil lavagem e secagem rápida, o oxford amarrota pouco e pode ser encontrado atualmente a preços baixos.

Retrós

Fio de seda ou algodão usado para costura; cilindro de madeira ou plástico em que se enrola a linha.

Não contem ao pessoal do marketing, mas o corretor Rodolfo entrou na alfaiataria de dois por quatro metros com a “compra na cabeça”, já que realmente o modesto comércio não apresenta nenhum atrativo parecido com as reluzentes vitrines das lojas de shopping.

Melhor retificar. O bom papo do dono melhora o humor de qualquer um que esteja passando por lá numa tarde carrancuda de Curitiba. O tímido baiano, que veio com a família ainda criança para trabalhar na lavoura de café, logo se mostra um contador de histórias. A sua já é uma crônica, que resume um pouco da trajetória dos alfaiates que se estabeleceram em Curitiba no século passado. A geada destruiu o sonho verde, mas fez nascer o desejo de um dos quatro filhos do seu José, pai de Florentino, de aprender um ofício ainda em Bela Vista do Paraíso, Norte do estado. Florentino veio para Curitiba em 1959 – “de Califórnia a Ponta Grossa não tinha asfalto” – a tempo de protagonizar junto com uma geração de colegas tempos áureos da alfaiataria, contribuindo para o bem vestir dos moradores de uma cidade que prosperava.

Fino trato

Os alfaiates deveriam ser “tombados” como reservas de um tipo de comportamento que quase não mais existe. Polidos – independentemente da educação formal –, dão grande importância ao trato pessoal e talvez por isso atraiam tanto jovens fregueses como Rodolfo quanto pessoas maduras como o casal Iraci, 69, e Rene Bonassina, 68, clientes do seu Florentino há 20 anos. Professora aposentada, Iraci foi encomendar uma calça de lã para o inverno. Ela pergunta sobre qual o melhor tipo de bolso. O experiente alfaiate desenha na hora os modelos, ponderando os possíveis “efeitos colaterais” de cada um – “este aqui faz volume”, diz. “Ela é muito perfeccionista”, afirma seu Rene. Pedido anotado na caderneta, o casal se despede. A calça ficará pronta em uma semana e durará muitos invernos, garante dona Iraci ao sair.

Seu Florentino diz que Iraci é exceção. Atualmente, a clientela é quase toda masculina. E, com a diminuição do movimento, ele passou a aceitar mais consertos e reformas, demandas armazenadas em sacolas de supermercado nos fundos da alfaiataria. Os alfaiates também atualizam modelos feitos há décadas, mas que preservam a qualidade da manufatura – um ajuste aqui, uma lapela reduzida e pronto!

A resistência

Do outro lado do Centro, no edifício Tijucas, na Rua XV, vou tomar um café com leite com Ferdinando Nardelli, um dos 18 alfaiates do prédio e também um dos profissionais mais respeitados em atividade da capital. A bebida que sai quente da garrafa térmica é disputada por quem passa por acaso – ou não – no segundo andar. Quem quiser pode ter um dedo de prosa com o simpático – e sempre impecável – septuagenário e comer algumas bolachas Maria para acompanhar a média.

Prestes a completar 74 anos, ele é o representante local da categoria. Ocupa a presidência do Sindicato dos Alfaiates do Paraná pela “quinta ou sexta” vez. Já se sentou até diante de presidente – João Figueiredo, em 1982 – para tentar articular uma estratégia que ajudaria na preservação do ofício.

A resposta veio um mês depois, em forma de carta, colocando o Senai à disposição para formar jovens que tinham praticado pequenos delitos. Não deu certo. Uma escola para alfaiates parece um sonho cada vez mais distante – como ensinar um ofício que perpassa não apenas a técnica, mas todo um conjunto de comportamentos e relações de valores?

Sexagenários, os alfaiates atuais quase já não formam aprendizes, expondo a fragilidade de uma profissão que não tem como característica ser passada de pai para filho. “No passado, ser aprendiz era uma possibilidade de ascensão social sem ter de estudar. O alfaiate tinha o mesmo status de um médico. Não estudava tanto, mas a dedicação era a mesma”, diz o antropólogo e fotógrafo João Castelo Branco Machado, coautor do livro Alfaiatarias em Curitiba, que retrata o universo da alfaiataria na capital.

Conforme a antropóloga Va­­léria Oliveira Santos, outra coautora da obra, as alfaiatarias tinham uma hierarquia peculiar, que sobrevive apenas em parte. Os aprendizes trabalhavam de graça até se tornarem oficiais, profissionais que se debruçam sobre determinadas peças, como calças, e que permanecem na função até estarem aptos a se tornar mestres alfaiates. “Se tornar mestre é um reconhecimento moral ao olhar dos pares. Quer dizer: ‘agora você é tão bom que pode atender seus próprios clientes’”, explica.

Hoje, seu Florentino trabalha sozinho, e seu Nardelli, que chegou a ter dez funcionários, conta apenas com um oficial. Os filhos de ambos seguiram carreiras bem diferente da dos pais. “Os filhos dos alfaiates foram para profissões como o Direito. Eles não iriam preparar os filhos para um ambiente de trabalho que estava sofrendo grandes mudanças”, pondera Valéria.

Seu Nardelli, que aos 11 anos deixou a escola por decisão dos pais, imigrantes italianos, para aprender o ofício, conta que nos anos 30 Curitiba era um eldorado para os alfaiates. Cidade de indústria, comércio e universidade. Aos 21 anos, em 1958, Nardelli desembarcou na capital paranaense. Do segundo andar do Tijucas, onde está há 51 anos e hoje é síndico, costurou uma vida boa, casou-se e teve três filhas, “uma agrônoma, uma empresária e outra gerente de banco”, frisa. Já poderia ter parado ou gastar um pouco mais de tempo na Boca Maldita, mas não abre mão da rotina de oito horas de trabalho e do atendimento pessoal aos clientes que restaram. As peças que saem de sua oficina são costuradas em duas antigas máquinas de pedal, uma Singer e outra Pfaff – a “melhor do mundo”.

Atualização

Nardelli viajou o mundo em congressos de alfaiates – certificados devidamente dispostos no cenário de sua oficina. A atualização constante, embora num ritmo particular, é uma forte característica desses alfaiates. A silhueta dos ternos acompanhou a evolução da moda e a tecnologia dos novos tecidos dá ao alfaiate a possibilidade de oferecer peças com as melhores matérias-primas do mercado. Os cortes de lã fria – um tecido que mantém o conforto térmico no inverno e no verão – e outros tecidos de qualidade chegam de um dia para o outro, via Sedex. Os paletós ganham etiquetas internas que informam a procedência do tecido e sua composição. O resultado disso é que um terno sob medida hoje custa bem mais do que há 50 anos.

Quem busca esse tipo de serviço tem consciência de que pagará pelo diferencial, o que torna a escolha também uma questão de status social. Muitos dos clientes são homens que vão se casar, ser padrinhos de casamento ou têm um porte físico específico, que dificulta a aquisição de roupas prontas. “Há clientes que não se adaptam ao pronto. O sob medida dura 15, 20 anos. É um trabalho artesanal, bem arrematado por dentro”, defende Nardelli.


Fonte:gazetadopovo.com.br

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